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Aborto como metáfora III

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III

 

A maternidade é, em nossa cultura, um código moral ao qual aquele que nasce com um corpo de mulher deve submeter-se. O fato de que a maternidade também venha a ser uma experiência espiritual e corporal para uma mulher sem que ela se sinta obrigada a ser mãe, não está descartado. A escolha livre das mulheres precisa ser defendida contra a menorização das mulheres pelo discurso masculinista que as submete à maternidade compulsória. Se a mulher deve se submeter à maternidade, ou seja, ao embrião, por fim, ela deve submeter-se ao que Elisabeth Badinter chamou de “sistema maternalista” (2010) cujo cerne é a tirania do bebê. A insubmissão do embrião à falta de desejo de maternidade define a soberania do embrião contra a escravidão da mulher. No discurso masculinista, o embrião está no cerne da gravidez e não a grávida, assim como o bebê está no cerne da maternidade e não a mãe. O feminismo é a crítica desta postura.

Buscando ver de outro modo, buscando verificar outra similaridade – e outra simetria – ocultada pelo discurso masculinista, o que vemos aparecer é outra questão: o embrião é tão objeto do discurso masculinista quanto a mulher. Pois que ele mesmo – e de fato – não tendo desejo (e sendo neste aspecto realmente diferente da mulher) não pode escolher por si mesmo, mas o homem toma para si o direito de escolher por ele. Como se se tratasse de escolher pelo embrião e não por si mesmo no ato de ser mãe ou pai. A projeção sobre o embrião é um excesso metafísico sem consistência. Assim como o homem “escolhe” pela mulher e constitui assim a ideologia masculinista, e escolhe pelo emrbião. Mas como não pode fazê-lo com sinceridade tanto porque não se trata de escolha para o embrião que não é livre, quanto porque da mulher ele usurpa a liberdade, o discurso masculinista não sai de sua tática cínica. A questão da “escolha” jamais poderá ser do embrião desde que ele não entrou na esfera da linguagem e do desejo. Ele é apenas uma potência de existência (mesmo que seja algo em certo sentido vivo) que se submete à potência do desejo ao seu redor. A má metafísica argumentará pelo “direito” do embrião do mesmo modo que Leibniz escrevia no século XVII mostrando como Deus pensava ao ter criado o mundo, como se Leibniz (tão bem criticado por Kant) pudesse saber o que Deus pensava. Caso lancem o argumento ainda mais “profundo” do “desejo do embrião” para além do “direito do embrião”, a atenção de quem busca questionar as ideologias deverá redobrar-se.

O resultado inevitável de tal argumento idealista é que o embrião parece dotado da condição existencial de “mais vida” (entendido aqui seja como “potência de vida”) enquanto a mulher de um “mais corpo” (como se não fosse ela mesma “vida atual”). A vida potencial é considerada neste argumento idealista como maior e mais valiosa do que a atual. É isto o que torna sua relação assimétrica: mesmo que o embrião precise do corpo da mulher, não derivaria dele. Daí que a correspondência de um e outro seja complicada e a decisão sobre suas vidas venha a depender de um acordo ou de uma “vitória” da mulher que será interpretada pelos masculinistas antiabortistas como imoral. No entanto, no masculinismo, é a mulher que tem que morrer – ser abortada – para dar lugar à mãe e assim deixar de ser “imoral”. Deste ponto de vista, o embrião, é que acaba sendo o instrumento do aborto que o masculinismo faz da mulher. Seria um carrasco inconsciente do desejo do corpo e da existência que ele habita. O mandante do crime seria o homem que escraviza a ambos. A mulher seria sempre culpada pelo sistema da criminalização em que o único livre é o homem (o velho pater potestas imperando sobre a família). Seja como mulher que não quis engravidar, seja como mulher que, engravidando, praticou o aborto. Como de certo modo independente da mulher, o embrião seria dotado de uma “mais vida” do que a da mulher, já que ela seria a mera vida (o corpo vivo) e ele a vida que conta “mais” do que a vida dela mesma cujo caráter “espiritual” foi sumariamente descartado ao abdicar do previamente estabelecido “desejo de ser mãe”.

A crença fundamentalista de que a maternidade é a chance da espiritualização da mulher está ligada a esta forma de teorizar separando a mulher de uma espiritualidade que possa estar para além da maternidade. A maternidade seria o capital moral da mulher. Transformada em uma espécie de “norma”, a maternidade define que uma mulher é ou não “normal”, ou seja, “natural” e não “desnaturada” quando é heterodeterminada como mãe. Crença que se tornou verdade incontestável fazendo da maternidade um mito, ou seja, uma explicação inquestionada (só seria questionada se as mulheres fossem seres suficientemente espirituais para isso, pois aos homens não interessaria questionar).

No contexto do discurso masculinista é que apareceu o mito da maternidade. Nele o aborto aparece como um tabu. Em contextos moralistas é proibido falar dele abertamente. Aquela que fala se arrisca ao apedrejamento simbólico. Mulheres que se pronunciam falando de aborto, ou porque já abortaram ou porque abortariam se fosse preciso, são estigmatizadas como más ou anômalas. O aborto é, assim, uma metáfora para a mãe desnaturada, aquela que não quis obedecer à “natureza”, que não teria aceito viver segundo “sua” natureza. O embrião seria sacralizado na cultura ao ser o elo que ligaria o corpo da mulher ao espírito por ela adquirido apenas no ato da maternidade.

É preciso, assim, questionar estes discursos. Esta é a tarefa do feminismo conseqüente que vem fazendo o favor histórico de devolver às mulheres a questão do aborto contra os acobertamentos dos masculinistas expertos que temem a autolegislação das mulheres.

 

Mais-valia moral, biopolítica ou da importância da distinção entre ética e moral quando a questão é aborto

 

O tema “aborto” é eminentemente biopolítico. Mas não apenas. Por um lado, o argumento biopolítico faz ver que homens e seus poderes querem historicamente controlar os corpos das mulheres, mas por outro, é preciso também ver que a questão do aborto é uma das mais exploradas na busca da mais valia moral que reforça o poder das instituições num quadro social irreflexivo. Falar contra o aborto é, para os moralistas, politicamente correto. Afirmar o aborto como assassinato em vez de olhar para a necessidade de sua legalização como questão de saúde pública ou de liberdade feminina também.

Mas vociferar contra o aborto não é apenas um modo biopolítico de controlar a vida das mulheres, de perscrutar seus atos por meio de seus corpos, mas um modo de angariar adeptos de um modo geral por meio do discurso do senso comum se sustenta por meio d ídolos e sacerdotes. Neste sentido, a fala anti-abortista é apenas parte do discurso imbecilizante dos poderosos na direção de quem possa cair em sua conversa, ou seja, na direção de qualquer um que não esteja com o pensamento crítico em ação, bem como com a racional capacidade analítica. Em um país de mulheres analfabetas e de corrupção desmedida estas falas não são bem vindas.

A ética depende de uma reflexão intelectual sobre a moral. É só a reflexão da ética contra o saber pré-estabelecido do pré-conceito que pode mover a sociedade de sua indolência atual neste campo. Com isso não quero sustentar que a moral deve ser lançada fora como resto incômodo, mas que é preciso questioná-la sempre no seu próprio processo de transformação histórico e geográfico. O controle moral que se vale da incompetência intelectual que elevaria a questão à ética, faz da moral um amplo campo do poder. A ética, neste caso, é o campo não do poder como manipulação, mas do poder como potência de transformação. Uma ética que seja crítica da moral deve prever a exposição das relações de poder que estão por trás da constituição dos valores. Por exemplo, o da vida sobre a qual se alicerça o discurso ideológico contra as mulheres.

Os argumentos contra o aborto arriscam-se no capcioso. Atém-se, de um modo geral à ideologias, posições grosseiras afirmativas ou negativas. Não ultrapassam a indignação moral que, ainda que seja fundamental – pois é impossível deixar de lado os sentimentos e emoções morais na elaboração de uma ética – não nos faz pensar no que fazemos e, com isso, não nos lança no território teórico-prático da ética. Ética é o campo onde a pergunta “o que estou fazendo?” é tão importante quanto a pergunta “onde quero chegar com o que faço?”, o que implica medir conseqüências.

Homens que nunca irão parir, jamais serão mães, não abortarão falam sobre o aborto enquanto as mulheres fazem. Não devemos com isso supor que os homens não deveriam simplesmente deixar de discutir a questão, mas perguntar por que a palavra dos homens se mostra prevalente nesta questão. Devemos perguntar por que eles parecem mais interessados do que as imediatamente interessadas que continuam fazendo ou não seus abortos, tendo ou não seus filhos. A contradição entre o discurso dos homens e a ação praticada por mulheres é o que precisa ser levada a sério. Ela pode ajudar a explicar porque o aborto não foi legalizado no Brasil e nem será em países onde as mulheres são, em sua maioria, pobres e desprovidas de poder.

 

A legalização do aborto não virá dos donos do poder e dos discursos que comandam e decidem sobre o corpo das mulheres. Elas, em silêncio, agem como se não fossem donas e senhoras de seus corpos. E, de fato, não o são enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da maternidade, da vida doméstica, do voyerismo do qual são a mercadoria. Que as decisões sobre seus próprios corpos não pertença às mulheres é uma contradição que ainda muito poucas conseguem avaliar. Não ter voz significa não pertencer à política. À medida que não participam e nem percebem o quanto estão alienadas da conversa, as mulheres perpetuam a injustiça. Em última instância, estão distantes da ética que envolve a decisão sobre seus direitos e sua própria vida.

Além disso, a questão do aborto sinaliza que a liberdade das mulheres – prisioneiras ancestrais de uma estrutura social que tem sua lógica – está sempre vigiada. Que nossa sociedade seja patriarcal significa bem mais do que dominação dos homens sobre as mulheres. Que estas sejam vítimas e aqueles algozes. Mas que o patriarcado depende da ausência de democracia na qual os direitos das mulheres venham à luz.

 

Bibliografia sugerida e eventualmente citada

 

1.      Agamben, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

2.      Beauvoir, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

3.      Benjamin, Walter. Para uma critica de la violência y otros ensaios. Madri: Taurus, 2001.

4.      Blay, Eva. Assassinato de Mulheres e Direitos Humanos. São Paulo: ed. 34, 2008.

5.      Cabrera, Julio; di Sanctis, Thiago Lenharo. Porque te amo, não nascerás! Nascituri te Salutant. Brasília: LGE, 2009.

6.      Goldemberg, Ricardo. No círculo cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

7.      Mori, Maurizio. Aborto e Morale. Capire um nuovo diritto. Turim: Einaudi, 2008.

8.      Prado, Danda. O que é aborto. São Paulo: Brasiliense, 2007.

9.      Sontag, Susan. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. Trad. Rubens Figueiredo e Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

 


Arquivo em:ABORTO, ÉTICA, ética e educação, Feminismo, Mulheres Tagged: ABORTO, Filosofia feminista, Mulheres

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